Exercício da Oficina de Literatura Infanto-Juvenil ministrada por Luis Dill
Tempo: Livre
Material: Primeira frase do livro "A Metamorfose" de Franz Kafka
..........................................................................................................
Em poucos instantes a temperatura chegaria a 100°C. O movimento de subir e descer por entre bolhas tornava o processo extremamente cansativo. Pequenos grupos eram levados e se misturavam aos que do outro lado primeiro chegaram. Assim fora, desde o início dos tempos. Acotovelaram-se na procura por um bom lugar para ficar e esperançosos imploravam dias melhores.
E, naquele dia, a leva tinha sido boa, encheu-se o recinto de vidro quase que por completo. Era sabido, desde sempre, que a passagem seria difícil. Poucos resistiam. Por sorte, durariam mais que doze horas, mas estavam conscientes que carregariam sua cota de sacrifício. Um trajeto penoso entre o calor do inferno e o gelado fim de mundo onde aguardariam sufocados, caso durassem mais que um dia.
Grão-mestre, calado, mantinha-se atento ao canto esquerdo do recinto. Os olhos cansados já viram tempos melhores. Lembrou dos trigais de infância que o vento embalava delicado. O sol que dourava seu corpo e transformava o campo em que viviam num imenso tapete de ouro. Suspirou fechando os olhos. O peso da saudade esvaziou-lhe as narinas.
Do meio da multidão, após um movimento brusco, surgiu grão-fa escoltado por grão-ri e sua inseparável prima grão-nha. Aos tropeços atravessaram a sala e caíram aos pés de Grão-mestre. Indiferente, pensou: “Crianças(!) O que sabem da vida?”- escorou seu pequenino queixo na mão e voltou a olhar para a borda de vidro.
- “Grão-mestre; Grão mestre!” – afoito falava grão-ri, esbarrando nas palavras – “É verdade que lá no campo éramos livres?”
- “Deixa de bobagem grão-ri.” – disse grão-nha, tentando amenizar a indiscrição de seu primo- “Não importune nosso Grão-mestre com tolas perguntas!” – sentou arrumada em pose feminina.
-“Grão-mestre; Grão-mestre!” – continuou grão-ri sob o olhar ácido de sua prima – “Para onde vamos seremos livres como éramos no campo?”
Ele olhou para o menino com piedade. Era visível a falta de conhecimento daquela criança e doía ter que lhe abrir os olhos e corromper seus mais ingênuos sonhos com incertezas adultas. Passou a mão na cabeça de grão-ri que se apoiara nos joelhos do mestre e proferiu:
-“Eu estou aqui há mais tempo que a soma do tempo de todos vós. Estou aqui por ter tido a sorte de ser deixado para trás. Na nossa vida, a que temos no momento, o mérito não está em avançar, mas em ser esquecido. Maior herói será aquele que mais tempo permanecer incógnito. Mas já aviso, até para este, existe um prazo. Da passagem ninguém foge.”
O silêncio tomou conta do grupo. Por minutos, mantiveram-se em apnéia. O velho Grão-mestre limpou os lábios salivados e continuou:
-“A passagem é longa, estreita e escura. Encontrarão de tudo lá. Do amigo de infância ao ser mais desconhecido. Para algumas coisas sequer terão palavras para descrevê-las." - pigarreou imponente e inspirado continuou-"Desde que fomos retirados a força do nosso amado campo, a nossa adaptação à cidade grande, a separação das famílias, a redistribuição em cubículos, andares e mais andares, corredor por corredor, até o momento que nos escolheram para a passagem, tudo, absolutamente tudo será reavaliado por vós e construirá a base da nova vida, no outro lado. A passagem, como disse, será difícil, para alguns mais do que para outros, mas no fim a luz se fará e todos renasceremos para escrever uma nova história."
Grão-nha, hipnotizada, não disfarçava a admiração pela sabedoria do Grão-mestre. Ajeitava-lhe as vestes com carinho e respeito quando ouviu a voz grunhida de grão-fa manifestar-se em oposição:
-"Não acredito que sejamos apenas isto. Nosso destino não tem que ser o mesmo de tantos que já foram."–subiu nas costas de um qualquer que ali estava a escutar-"Somos livres se assim desejarmos. Somos livres o bastante para querer da vida algo mais do que dificuldades de passagem."
Grão-mestre sorriu com tamanho idealismo em tão pequeno corpo.
-"Ilusões meu jovem, ilusões. Tu és apenas uma fração do meio em que vive. Terás o mesmo destino que todos aqui, goste ou não, lute ou não. Reze para que te esqueçam, isto sim. Para que te esqueçam."
De peito inchado, grão-fa bradou destemido:
-"Eu tive uma visão! Escutem todos! Hoje, eu tive uma visão!"–esticava a cabeça para todos os lados tentando atingir o maior número de ouvintes que boquiabertos repetiam aos sussurros a frase dita por ele -"Na visão, certa manhã em minha cama, ao acordar de sonhos intranqüilos, encontrei-me metamorfoseado num inseto monstruoso. Sim, num inseto!”
A histeria tomava conta do grupo. Grão-mestre teve que intervir:
-"HERESIA! Não creiam nessa bobagem. Tentativa tola de desviar nossa atenção. Faremos a passagem em breve. Devemos nos concentrar para que o trânsito seja rápido e possamos receber a graça de assumir nossas futuras funções com dignidade."
O atrevido grão-fa ia continuar seu revolucionário discurso quando grão-ri colocou sua mão rechonchuda na boca dele abafando suas palavras e pondo um fim a questão. Calaram-se todos.
Mais tarde, em prazeroso descanso, protegidos por quente cobertor vermelho que os minutos lhe puseram, ainda na espera da passagem, percebia-se uma tensão disfarçada em cada olhar trocado, em cada esboço de sorriso. Por fim dormiram.
Foram acordados por outro movimento brusco. Um solavanco mudo. Parte do grupo havia sido extraído do recinto sem tempo para despedidas. Aos que ficaram restou o imenso vazio no canto esquerdo. Um rastro deixado. Pedaços do cobertor vermelho. Uma ferida aberta. Grão-fa procurou em desespero seus amigos, grão-ri e a delicada grão-nha. Viu-os longe, mas a salvo. O Grão-mestre permanecia em elevado ponto, intacto.
Foi então que a temperatura começou a cair bruscamente. O frio cortante penetrou-lhes as carnes. Pequenos filetes do cobertor vermelho congelaram-se ao redor deles tornando o movimento impossível. A luz se apagou e assim ficaram. Nenhuma palavra fora dita, nenhum choro, nenhum lamento. A passagem iniciava, era só.
Quinze horas depois, a luz voltou a raiar. Rapidamente, um vento quente banhou-lhes o rosto levando consigo parte do desconforto noturno. Então, grão-nha soltou seu mais horrendo grito. Seus olhos arregalados fixaram-se em grão-fa que retribuía a estranheza.
-"Grão-fa és tu? Tu? Não pode ser!"–exclamava misturando curiosidade e repulsa.
-"Eu o quê?"-olhou grão-fa ainda sem saber o que havia acontecido.
-"Tu és um inseto! Um inseto como na visão! Um inseto!"-sorria nervosa.
-"Eu falei! Eu disse! Grão-mestre, eu disse, não disse?"-olhava orgulhoso para seu corpo confiante de sua esperteza, mas estranhando as grandes patas.
Antes que Grão-mestre pudesse justificar o que havia ocorrido na noite anterior, um barulho esquisito foi ouvido, um novo tremor foi sentido, dessa vez mais forte. Naquele exato momento perceberam, por incríveis milésimos de segundos, a leve brisa que batia carinhosa e o calor morno do sol, do mesmo jeitinho que guardavam na lembrança da remota infância. Por breve e maravilhoso instante sorriram todos, abraçaram-se mentalmente em comunhão.
Então a travessa de nhoque, resto da janta, coberta de molho de tomate, foi virada dentro do prato do cão feroz que babando esperava pela refeição. O inseto, mosca atrevida, debatia-se tentando alçar voo e salvar a pele, mas o miserável cão, num único movimento engoliu a todos, sem exceção. E a mosca, coitada, teve tempo apenas de gritar – Que merda!
*Nota do autor: 29 é o dia sagrado do nhoque. Peço uma breve prece para os que se foram.