quinta-feira, 30 de abril de 2009

A Passagem



Exercício da Oficina de Literatura Infanto-Juvenil ministrada por Luis Dill
Tempo: Livre
Material: Primeira frase do livro "A Metamorfose" de Franz Kafka

..........................................................................................................

Em poucos instantes a temperatura chegaria a 100°C. O movimento de subir e descer por entre bolhas tornava o processo extremamente cansativo. Pequenos grupos eram levados e se misturavam aos que do outro lado primeiro chegaram. Assim fora, desde o início dos tempos. Acotovelaram-se na procura por um bom lugar para ficar e esperançosos imploravam dias melhores.

E, naquele dia, a leva tinha sido boa, encheu-se o recinto de vidro quase que por completo. Era sabido, desde sempre, que a passagem seria difícil. Poucos resistiam. Por sorte, durariam mais que doze horas, mas estavam conscientes que carregariam sua cota de sacrifício. Um trajeto penoso entre o calor do inferno e o gelado fim de mundo onde aguardariam sufocados, caso durassem mais que um dia.

Grão-mestre, calado, mantinha-se atento ao canto esquerdo do recinto. Os olhos cansados já viram tempos melhores. Lembrou dos trigais de infância que o vento embalava delicado. O sol que dourava seu corpo e transformava o campo em que viviam num imenso tapete de ouro. Suspirou fechando os olhos. O peso da saudade esvaziou-lhe as narinas.

Do meio da multidão, após um movimento brusco, surgiu grão-fa escoltado por grão-ri e sua inseparável prima grão-nha. Aos tropeços atravessaram a sala e caíram aos pés de Grão-mestre. Indiferente, pensou: “Crianças(!) O que sabem da vida?”- escorou seu pequenino queixo na mão e voltou a olhar para a borda de vidro.

- “Grão-mestre; Grão mestre!” – afoito falava grão-ri, esbarrando nas palavras – “É verdade que lá no campo éramos livres?”
- “Deixa de bobagem grão-ri.” – disse grão-nha, tentando amenizar a indiscrição de seu primo- “Não importune nosso Grão-mestre com tolas perguntas!” – sentou arrumada em pose feminina.
-“Grão-mestre; Grão-mestre!” – continuou grão-ri sob o olhar ácido de sua prima – “Para onde vamos seremos livres como éramos no campo?”

Ele olhou para o menino com piedade. Era visível a falta de conhecimento daquela criança e doía ter que lhe abrir os olhos e corromper seus mais ingênuos sonhos com incertezas adultas. Passou a mão na cabeça de grão-ri que se apoiara nos joelhos do mestre e proferiu:
-“Eu estou aqui há mais tempo que a soma do tempo de todos vós. Estou aqui por ter tido a sorte de ser deixado para trás. Na nossa vida, a que temos no momento, o mérito não está em avançar, mas em ser esquecido. Maior herói será aquele que mais tempo permanecer incógnito. Mas já aviso, até para este, existe um prazo. Da passagem ninguém foge.”

O silêncio tomou conta do grupo. Por minutos, mantiveram-se em apnéia. O velho Grão-mestre limpou os lábios salivados e continuou:
-“A passagem é longa, estreita e escura. Encontrarão de tudo lá. Do amigo de infância ao ser mais desconhecido. Para algumas coisas sequer terão palavras para descrevê-las." - pigarreou imponente e inspirado continuou-"Desde que fomos retirados a força do nosso amado campo, a nossa adaptação à cidade grande, a separação das famílias, a redistribuição em cubículos, andares e mais andares, corredor por corredor, até o momento que nos escolheram para a passagem, tudo, absolutamente tudo será reavaliado por vós e construirá a base da nova vida, no outro lado. A passagem, como disse, será difícil, para alguns mais do que para outros, mas no fim a luz se fará e todos renasceremos para escrever uma nova história."

Grão-nha, hipnotizada, não disfarçava a admiração pela sabedoria do Grão-mestre. Ajeitava-lhe as vestes com carinho e respeito quando ouviu a voz grunhida de grão-fa manifestar-se em oposição:
-"Não acredito que sejamos apenas isto. Nosso destino não tem que ser o mesmo de tantos que já foram."–subiu nas costas de um qualquer que ali estava a escutar-"Somos livres se assim desejarmos. Somos livres o bastante para querer da vida algo mais do que dificuldades de passagem."

Grão-mestre sorriu com tamanho idealismo em tão pequeno corpo.

-"Ilusões meu jovem, ilusões. Tu és apenas uma fração do meio em que vive. Terás o mesmo destino que todos aqui, goste ou não, lute ou não. Reze para que te esqueçam, isto sim. Para que te esqueçam."

De peito inchado, grão-fa bradou destemido:

-"Eu tive uma visão! Escutem todos! Hoje, eu tive uma visão!"–esticava a cabeça para todos os lados tentando atingir o maior número de ouvintes que boquiabertos repetiam aos sussurros a frase dita por ele -"Na visão, certa manhã em minha cama, ao acordar de sonhos intranqüilos, encontrei-me metamorfoseado num inseto monstruoso. Sim, num inseto!”

A histeria tomava conta do grupo. Grão-mestre teve que intervir:

-"HERESIA! Não creiam nessa bobagem. Tentativa tola de desviar nossa atenção. Faremos a passagem em breve. Devemos nos concentrar para que o trânsito seja rápido e possamos receber a graça de assumir nossas futuras funções com dignidade."

O atrevido grão-fa ia continuar seu revolucionário discurso quando grão-ri colocou sua mão rechonchuda na boca dele abafando suas palavras e pondo um fim a questão. Calaram-se todos.

Mais tarde, em prazeroso descanso, protegidos por quente cobertor vermelho que os minutos lhe puseram, ainda na espera da passagem, percebia-se uma tensão disfarçada em cada olhar trocado, em cada esboço de sorriso. Por fim dormiram.

Foram acordados por outro movimento brusco. Um solavanco mudo. Parte do grupo havia sido extraído do recinto sem tempo para despedidas. Aos que ficaram restou o imenso vazio no canto esquerdo. Um rastro deixado. Pedaços do cobertor vermelho. Uma ferida aberta. Grão-fa procurou em desespero seus amigos, grão-ri e a delicada grão-nha. Viu-os longe, mas a salvo. O Grão-mestre permanecia em elevado ponto, intacto.

Foi então que a temperatura começou a cair bruscamente. O frio cortante penetrou-lhes as carnes. Pequenos filetes do cobertor vermelho congelaram-se ao redor deles tornando o movimento impossível. A luz se apagou e assim ficaram. Nenhuma palavra fora dita, nenhum choro, nenhum lamento. A passagem iniciava, era só.

Quinze horas depois, a luz voltou a raiar. Rapidamente, um vento quente banhou-lhes o rosto levando consigo parte do desconforto noturno. Então, grão-nha soltou seu mais horrendo grito. Seus olhos arregalados fixaram-se em grão-fa que retribuía a estranheza.

-"Grão-fa és tu? Tu? Não pode ser!"–exclamava misturando curiosidade e repulsa.
-"Eu o quê?"-olhou grão-fa ainda sem saber o que havia acontecido.
-"Tu és um inseto! Um inseto como na visão! Um inseto!"-sorria nervosa.
-"Eu falei! Eu disse! Grão-mestre, eu disse, não disse?"-olhava orgulhoso para seu corpo confiante de sua esperteza, mas estranhando as grandes patas.

Antes que Grão-mestre pudesse justificar o que havia ocorrido na noite anterior, um barulho esquisito foi ouvido, um novo tremor foi sentido, dessa vez mais forte. Naquele exato momento perceberam, por incríveis milésimos de segundos, a leve brisa que batia carinhosa e o calor morno do sol, do mesmo jeitinho que guardavam na lembrança da remota infância. Por breve e maravilhoso instante sorriram todos, abraçaram-se mentalmente em comunhão.

Então a travessa de nhoque, resto da janta, coberta de molho de tomate, foi virada dentro do prato do cão feroz que babando esperava pela refeição. O inseto, mosca atrevida, debatia-se tentando alçar voo e salvar a pele, mas o miserável cão, num único movimento engoliu a todos, sem exceção. E a mosca, coitada, teve tempo apenas de gritar – Que merda!



*Nota do autor: 29 é o dia sagrado do nhoque. Peço uma breve prece para os que se foram.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

O Dragão de Goma


Exercício da Oficina de Literatura Infanto-Juvenil ministrada por Luis Dill
Tempo: Livre
Material: diálogo direto e indireto
...........................................................................................................


As luzes estavam parcialmente acesas. Um aroma suave rondava o estacionamento de tapetes coloridos. Da parede central brotava um som que lembrava água e vento. Sentei, cruzei minhas pernas, fechei meus olhos e em cima de minha mais nova aquisição, aguardei. Não demorou muito até eu ser atingido por uma voz delicada e nitidamente formal:

- Vamos começar a prática de hoje com o Mangala Mantra.

Forcei para não abrir um olho e ver quem estava falando. Após o mantra, sanei minha curiosidade ao vê-la ali, também de pernas cruzadas, olhos serenos que pareciam tudo ver e um sorriso discreto como se já visualizasse que nosso destino seria inevitavelmente o chão.

- Primeira prática: Todos em pé – olhou para ter certeza que havíamos entendido – pés unidos, dedos abertos, coluna ereta, quadril encaixado, peito aberto, ombros para trás, escápulas abertas, abdômen para dentro, olhos no horizonte. Segue Surya Namaskara A: Urdhva Vrikasana, Uttanasana A, Uttanasana B, Chaturanga Dandasana, Urdhva Mukah Svanasana, Adho Mukha Svanasana, Uttanasana B, Uttanasana A, Urdhva Vrikasana, Samasthiti. Mais uma vez – exclamou tranquila.

Demorei menos de um minuto para perceber que meu cérebro não acompanhava meu corpo.

- Terceira Surya Namaskara A, não esqueçam a respiração – sussurrou elegante.

Quando levantei minha cabeça, lá pela quinta repetição, estava banhado de suor.

- Segura Adho Mukha (...) repirem 1 (...) 2 (...) 3 (...) – contava enquanto atravessava a sala.

E, lá estava eu, braços esticados e mãos abertas no solo, ombros posicionados, cotovelos para baixo, joelhos flexionados, calcanhares no chão, quadril para o alto e respi... rando(!) No número dois (...) senti minha mão escorregando, muito lentamente, e um pânico generalizado se instalando, gotas de suor brotando pelos poros. Segundos que pareciam horas.

“Malditos fabricantes de tapetes de yoga (!)” – pensei indignado – “Porque tanta goma (?)”

Terminei a frase com a cara achatada no chão. Olhei rapidamente para os lados tentando disfarçar, mas ninguém havia notado, exceto ela. Imperiosa sentenciou:

- Segunda prática: Surya Namaskara B: Utkatasana, Uttanasana A, Uttanasana B (...........) repira 1 (...) ...

Eu distraído permanecia em pé. Senti o sorriso cúmplice de quem entendia que a perfeição é o trabalho de uma vida. Sem jeito retribui tentando fazer o melhor possível. Desci revigorado para executar a prática. Soube naquele instante que cada passo deveria ser comemorado como uma vitória. Testei meus limites físicos e psicológicos e concluímos as práticas com dez minutos de prazeroso relaxamento.

“Finalmente o descanso merecido do guerreiro (!)” - pensei - Voltara da batalha quebrado (...) mas havia lutado com bravura. As marcas na armadura não mentiam.

Então, já em casa, joguei aquele tapete laranja dentro do tanque, peguei o escovão e enfrentei o furioso dragão de goma que havia me derrubado no início. Ele não teria uma segunda chance. Não mesmo.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

O Intruso


Exercício da Oficina de Literatura Infanto-Juvenil ministrada por Luis Dill
Tempo: 15 minutos
Material: qualquer objeto da sala de aula
...........................................................................................................

Ele percorreu corredores de metal cinza. Esbarrou contra a parede ao dobrar à direita. Estava escuro. Não havia avisado de sua chegada, mas o som de seus movimentos já o denunciava. Passou por entre as frestas com facilidade descendo até a nuca da delicada senhora que, sentada com o livro nas mãos, interrompeu sua leitura imediatamente ao senti-lo tão próximo. Micro esferas levantaram-se na pele fina.Temperatura: 15°C.

A Boca de Dante


Exercício da Oficina de Literatura Infanto-Juvenil ministrada por Luis Dill
Tempo: livre
Material: Frase -
“De sua boca som nenhum saía.” – A Divina Comédia – Dante Alighieri
...........................................................................................................

Uma voz repetia incessante, feito mantra, aquela mísera fração de desespero: “De sua boca som nenhum saía” (...) ”De sua boca som nenhum saía”. Os olhos de Jonas recusavam-se a descer para a próxima linha. Injetados, secos, não piscavam. De repente, fechou o livro em um movimento brusco. Jogou o antigo exemplar de “A Divina Comédia” aos pés da cama.


Ainda tentando voltar à normalidade, lutava para controlar as palavras persuasivas que martelavam em sua mente. Na noite anterior, Jonas havia quebrado muitas regras, essas cultivadas ao longo de uma educação perfeita. Família respeitada, escola de alto nível e de um desempenho notável nos estudos. Naquela manhã, porém acordou com a sensação de que havia destruído tudo isso. Só pensava naquele maldito livro. A esperança de esquecer enquanto dormia se desfez ao encarar novamente o terrível exemplar.


Logo após acordar, ainda suando frio, abriu o livro na página onde havia parado. Sentiu novo arrepio. Aquela frase não fazia o menor sentido, pelo menos até aquele instante. Sabia, no entanto, que como das outras vezes, ela iria persegui-lo até tornar-se realidade. O livro retribuía o olhar, espiando por entre os lençóis, aos pés da cama. Parecia ter vida. Parecia rir. Riso de quem sabe o que vai acontecer. Jonas atirou-se no travesseiro, fechou os olhos e uma imagem formou-se em sua mente. Difusa no início, mas extremamente nítida após segundos. Então, seu grito ecoou no quarto.


Em um piscar de olhos, Ana já estava ao seu lado. Jonas mirava o livro em desespero. Ana abraçou seu namorado com carinho e percebeu sua postura tensa e suas mãos trêmulas. Sussurrou-lhe ao ouvido: “O que houve meu amor? Outro Pesadelo?” - Jonas mal conseguia falar - “Vai acontecer outra vez.” – sentenciou – “Acontecer o que?” – Jonas baixou os olhos em direção às mãos – “Eu não consigo controlar. Antes eu até conseguia adiar. Mas agora, ele está mais forte.” – Ana amorosamente tentava entender – “Quem está mais forte? – olhava perplexa aquela jovem de olhos grandes e corpo esguio - “Dante!”– e um silêncio pesado tomou conta do quarto – “Ele diz para eu fazer coisas.” – resmungou Jonas nitidamente envergonhado – “Que coisas... que tipo de coisas, meu amor?” – os olhos de Jonas ficaram úmidos – “Coisas das quais jamais terei orgulho.” – Ana o abraçou mais uma vez – “Você está muito cansado. Está estudando muito. Precisa aliviar sua cabeça.” – aconselhava enquanto afastava uma pequena mecha crespa que pendia na testa de Jonas.


Então ele fixou seus olhos nos de Ana. Duas grandes esferas de azul cristalino a mirá-lo com amor. Suas sobrancelhas foram descendo unidas até quase esconder os de Jonas e suas mãos agarraram os pulsos de Ana com brutal violência. E de sua boca, transformada por um misto de medo e repulsa, som nenhum saía (...)

A Fuga


Exercício da Oficina de Literatura Infanto-Juvenil ministrada por Luis Dill
Tempo: 5 minutos
Material: uma laranja, uma faca e a fotografia de um velho

...........................................................................................................

Jonas olhou constrangido. Sua mão procurou esconderijo no bolso do jeans sujo. O velho tinha os olhos de seu avô. A pele, textura de casca de laranja, refletia suor. Pela janela não conseguiria fugir, certo. Sentia a proximidade muda da faca adormecida no canto da porta.

Expresso Duplo Sem Açúcar

Parte I


Sem fazer alarde ele entrou. Escolheu a última mesa. Abriu o jornal e aguardou ser atendido com a tranquilidade de um monge em exercício de meditação. Fez seu pedido para uma impaciente moça de cabelos castanhos presos em um impecável rabo de cavalo. O ambiente era simpático apesar do pouco empenho da moça em agradar. Fotografias de vários lugares estavam fixadas em longa parede de tijolos antigos, formando uma irregular sequência de pequenos quadros. A entrada exibia algumas folhagens discretas que dividiam espaço com uma enorme prateleira de madeira envelhecida onde, à disposição dos clientes, ficavam jornais e revistas. Os aromas de café torrado e pão quente percorriam o corredor; lascivos desafiavam os gulosos narizes, ora um, ora outro. Ao longo das seis mesas enfileiradas em frente ao balcão, uma ampla vitrina permitia privilegiada visão da avenida principal. Naquela manhã, poucas pessoas transitavam pela calçada e a ausência de carros permitia ver os primeiros raios de sol refletidos nas poças de água deixadas pela rápida chuva da madrugada. Depois de tomar o café, depositou o dinheiro na mesa, e com discrição saiu. Cris acompanhou com olhos baixos o deslocar do estranho, da mesa ao fundo até a porta, perdendo-se no último vislumbre de suas costas enquanto a mesma porta incumbia-se de mostrar a distância que deveria ser respeitada entre uns e outros.
Dois meses atrás, quando ele entrou pela primeira vez na cafeteria, trouxe consigo o desconforto característico das grandes mudanças. Cris sentiu uma contração estranha no estômago, o coração acelerou e impiedosamente foi arrebatada por uma sensação angustiante que indicava a proximidade concreta do seu objeto de maior desejo e ao mesmo tempo de seu maior temor. Desde então, habituou-se a esperá-lo todos os dias no mesmo horário. E ele apresentava-se pontualmente. Escolhia a última mesa e lia seu jornal preferido acompanhado de uma xícara de café e lascas de casca de laranja com açúcar. Cris observava tudo pelo canto do olho enquanto atendia os outros clientes que aguardavam no balcão. Desejava saber quem era aquele homem, de onde vinha, para onde iria, do que gostava e se possível, se estaria disposto a depositar alguma esperança naquela vida medíocre que fora destinada ao nascer. Mas ele sempre partia apressado deixando um rastro de interrogações. Os olhos de Cris beijavam as costas do estranho ao sair enquanto ele, apressado, atravessava a avenida e sumia rapidamente em um taxi.
Certo dia, ele não apareceu. E no dia seguinte também não. Ela até tentou esticar os minutos do relógio, na esperança de um atraso, mas uma ansiedade perturbadora a fez quebrar xícaras, errar pedidos, e por vencida concluir que ele não apareceria. Teve a certeza da inutilidade de seus sonhos já que eles não conseguiam atravessar aquela idiota porta. E assim, sem verter lágrima, continuou servindo os clientes como sempre fizera e provavelmente continuaria fazendo por muito, muito tempo.
Passado alguns dias, ele voltou. Estava diferente. Cabelo cortado, camisa alinhada e um perfume discreto que antecipou sua entrada na cafeteria. Atravessou o corredor, acomodou-se no balcão, contrariando o olhar da moça do rabo de cavalo que pronta, ao fundo, o aguardava impaciente ao lado da mesa. Cris, de costas, não havia percebido que ele estava ali tão próximo, virou-se sem perceber o que acontecia. Seus olhos pararam nos lábios dele e suas mãos gelaram em contato com a xícara quente que segurava. Ele sorriu constrangido. Sentado na frente dela, depositou as mãos sobre o balcão e pediu seu café costumeiro. Não notou o jornal posto ao seu lado pela moça do rabo de cavalo que para deixar claro que o lugar dele não era ali, vestiu-se de arrogância e desdém e foi plantar-se ao lado da mesa ao fundo. Desta vez ele não estava interessado no jornal. Só tinha olhos para Cris que atrapalhada tentava esconder os nervosos dedos nas costuras do avental.
O local estava vazio, diferente dos outros dias. Ele iniciou conversa banal e em pouco tempo relatou suas aventuras pelo mundo. Ela escutou cada detalhe com total atenção. Entre uma história e outra percorreu de cima a baixo sua antiga lista de exigências esquecida em algum lugar do peito e não conseguiu reprová-lo em nenhum item importante. Observou seu sorriso acolhedor, a gentileza dos gestos, a clareza das idéias, a atenção que destinava as coisas, como descrevia cada detalhe de suas aventuras, o tom da voz e até mesmo as contradições que inexistiam nos seus relatos. Formulou hipóteses, criou situações, percorreu estranhos sentimentos até descartar completamente qualquer empecilho entre os dois.
Nos dias que seguiram... Pontualmente ele sentava em frente ao balcão e cheio de esperança, declarava sua admiração, sua vontade e sua paixão. Propunha companhia para uma vida nova, cheia de aventuras e um mundo inteiro para desvendar. Partiriam em breve e retornariam quando estivessem exaustos de percorrer tantos lugares interessantes. Aí, somente aí, pensariam em sossego. Cris suava frio. Sentia suas pernas tremer. Ele representava tudo o que desejou ter, estes anos todos, atrás daquele balcão escuro.
Acostumou-se a enxergar o mundo pelo vidro daquela vitrina. Sabia que a florista tinha um romance com o farmacêutico da esquina. Descobriu pelos olhares cúmplices, cheios de desejo, e pela suavidade dos toques distraídos e prolongados, ao pegar um remédio ou entregar uma flor. Sabia também, que o motorista do ônibus 235 sempre passava com 15 minutos de atraso, o que não era de se estranhar, pois bastava olhar como o motorista se arrastava quando entrava pela porta da cafeteria para pegar o café da manhã e maiores conclusões se faziam desnecessárias. A professora de inglês que morava no prédio em frente, passeava todas as manhãs com seu Bulldog francês, declamando para o bichinho poetas ingleses na língua de origem e deixando um rastro de cabeças viradas e bocas nervosas que a intitulavam: a louca. Havia também o guarda da relojoaria, que sentado em seu humilde trono, após o almoço, não resistia ao marasmo e pendia a cabeça para a direita em compenetrado cochilo de trinta minutos e tal fato era desconsiderado pelo casal de proprietários uma vez que não havia registro de alguma tentativa de furto desde que a loja fora inaugurada.
O seu ridículo mundo era demasiado restrito e compunha-se basicamente de um modesto apartamento quarto e sala, uma coleção de bem cuidados livros e um mísero emprego para garantir um pouco de dignidade na vida. Passava seus dias entre o seu reflexo no vidro da vitrina, muitas vezes não reconhecia aquele rosto que implorava por salvação atrás do escuro balcão, e os vultos coloridos que percorriam a avenida, mais nítidos nos dias de sol.
Ele continuou ali, olhando, hipnotizando, embriagando com doces palavras, recheadas de desejos. Ela tornou-se presa fácil, não pôde negar, a chama da mudança deu seus primeiros sinais de vida. Será que conseguiria manter-se em pé ao sair detrás daquele escuro balcão? Há muito tinha esquecido o que representava fazer escolhas. Sua vida havia se transformado em uma sucessão de fatos e não necessariamente de escolhas. Simplesmente permitiu que a vida seguisse seu curso. Era assim que se sentia segura. Mas naquele dia, um sopro de frescor levantou toda a camada de pó acumulada ao longo dos anos em sua alma. O desejo produzia eco nos recantos mais profundos do seu corpo e a lógica implorava para ser deixada em paz.
Entre um gole e outro, ele descreveu o longo período que viveu no exterior, as muitas culturas que conheceu e um apanhado de situações inusitadas que deixariam metade das pessoas daquela cidadezinha de olhos arregalados e queixos caídos. Transparecia orgulho sem ser arrogante e parecia ter total domínio sobre o próprio destino. Tão diferente dela que necessitava sempre por a casa em ordem para não esbarrar em algo perdido no caminho. Levou anos para organizar seus pensamentos. Acrescentou coisas e subtraiu outras, fez sua escala de valores. Compôs frases de efeito para todas as ocasiões que necessitassem soluções rápidas e firmes. Tinha uma enorme dificuldade de escolher entre o preto e o branco, entre a ausência e a totalidade. As nuances a interessavam e os detalhes a aprisionavam.
Ele era a areia e ela o rochedo. Como poderia seguir a areia? Teria que se fragmentar, reduzir-se a pó, fundir-se a ela até não saber o começo de um e o final do outro. De quantos rochedos aquela areia era composta, resíduos de outras paragens? Misturar-se significava perder sua unidade, se expor e isso a assustava. Como rochedo poderia enfrentar grandes ondas. Já fizera isso muitas vezes. Mas como grãos, desprotegida, sobreviveria ao mundo? Seria mais leve levada pelo mar ou arrastada pelo vento? Não mais haveria de se preocupar com as grandes ondas? O que aconteceria aos seus fragmentos no decorrer da longa viagem? E se naquele devaneio ela se perdesse? Talvez até de si mesma.
Ele permaneceu embriagado de amor. Deixou transparecer toda a admiração que sentia por ela. Seus olhos brilharam ao perceber que, aflita, lutava entre razão e emoção. E confiante esperou. Certo da vitória. Ela debatia-se entre as paredes grossas de seu coração. Portas foram abertas, algumas há muito fechadas. Retirou entulhos, arejou pequenos quartos e pôs alguns sentimentos em clausura absoluta. Descobriu-se vaidosa. Seria isso fruto dos inúmeros elogios dados pelo estranho, dos quais não se fazia merecedora? Concluiu que de qualquer forma estaria desprotegida. Se ficasse, a solidão não a deixaria esquecer a oportunidade perdida. Se fosse, estaria sem chão, a deriva.
Mas em súbito impulso, olhou para os lados, desamarrou o avental sob o olhar atento da moça do rabo de cavalo, pegou sua bolsa do cabide, levantou a passagem de madeira do balcão e aproximando-se dele, disse:
- Vamos, antes que eu me arrependa.
Ele rapidamente passou seu braço pela cintura dela e depositou um rápido beijo em seus lábios trêmulos. A moça do rabo de cavalo mal conseguia acreditar. Correu ao alcance dos dois e pela primeira vez demonstrou algum sentimento:
- Você está louca, garota? O que pensa que está fazendo? Você não sabe nada sobre esse cara. Não cometa este erro. Controle-se.
Dessa vez ela sorriu. Um sorriso nervoso. Alterado.
- Eu esperei por ele a minha vida toda e ele me encontrou, finalmente; isso me basta.
Os outros funcionários se acotovelavam no balcão, mantendo uma distância segura. A moça do rabo de cavalo tentou novamente, não conformada:
- Você vai arruinar sua vida. Escute o que estou te dizendo.
Ele assistia a tudo sem se manifestar. Seus braços a protegiam das investidas da moça do rabo de cavalo.
- Não tenho o que perder se não tenho o que levar.
A moça do rabo de cavalo fez descer suas mãos ao lado do corpo e com um suspiro profundo anunciou sua desistência. Sabia ser inútil convencê-la.
- Só te peço um pequeno favor.
- Fale.
- Prepare um expresso duplo sem açúcar; para viagem.
E o sorriso nervoso voltou à face.
- Acho que vou precisar.






Parte II

Mais uma. Apenas mais uma esquina e estaria na avenida da antiga cafeteria. Cris não conseguiu conter a emoção. Os olhos marejados queriam verificar cada detalhe, cada tijolo, cada rosto. Sentiu medo. Três anos...
Usava um vestido de estampa miúda e sandálias baixas. O cabelo, levemente ondulado, solto ao vento, crescera desde sua partida, passando um palmo do ombro. Trazia nas costas uma pequena mochila e, na alma, um caminhão de culpa.
A cidade parecia a mesma desde sua fuga. Dobrou a esquina com os olhos esticados. Baixou a cabeça, tentando arranjar forças para se aproximar. Não demorou muito para perceber o farmacêutico dentro do quiosque, atrás das flores, com a felicidade estampada no rosto, montando um pequeno arranjo. Um ligeiro sorriso pousou no canto da boca. O amor era assim, capaz de transformar qualquer coisa. Por sorte, em coisas boas, mas nem sempre, isso ela sabia bem.
Cris fixou seus olhos castanhos no antigo relógio da fachada da relojoaria quando o ônibus 235 desceu a avenida em direção à Igreja. Eram onze horas. Andou até o meio da quadra. Parou no lado oposto à cafeteria. Olhou para a porta e a respiração ficou curta e acelerada.
Longo tempo. Tanto para saber, muito para contar...
A cafeteria estava como deixou. Parecia ter saído ontem, após um dia comum de trabalho. Da posição que estava conseguiu ver sua irmã. Reconheceria aquele rabo de cavalo a quilômetros. Ela era realmente uma pessoa feliz; pensou. Sempre segura de seus atos. Sua vida era tão cuidadosamente planejada quanto cada fio de cabelo preso naquele rabo de cavalo. Contentava-se em fazer o que tinha que ser feito. Cumpria rigorosamente suas funções e vivia de forma simples. Nenhuma grande desgraça havia ocorrido em sua vida. Simplesmente vivia o que tinha no dia, sem passado, sem futuro. Nunca reclamou de insegurança ou frustração. Era a pessoa em quem todos depositavam confiança, inclusive ela, que ali estava à espera dos seus braços acolhedores.
Atravessou a avenida. Como quem se esconde, parou receosa em frente à porta. Exitou. Olhou seu reflexo no vidro e sentiu vergonha. Sabia bem o que isso significava. Precisava de um banho. Um banho que levasse todas as impurezas, todos os pensamentos ruins, todas as dolorosas lembranças, até mesmo sua vida, se tivesse coragem, ralo a baixo. O pé direito tentou timidamente avançar. As mãos procuravam abrigo. Eram assim, em estado de tensão, enfiavam-se pelas frestas.
A moça do rabo de cavalo estava servindo um cliente quando, em um movimento rápido, como se tivesse ouvido um chamado, olhou em direção à porta e percebeu sua irmã parada, com a cabeça baixa e uma vontade explícita de fuga. Largou imediatamente a xícara e em poucos segundos atravessou a porta que parecia não existir. Puxou sua irmã para si e abraçou seu corpo com força. Cris apenas chorava. Chorava o choro dos tolos, dos iludidos. A moça do rabo de cavalo não disse palavra. Ficaram assim por longo tempo.
Já dentro, refeita, Cris recebeu o abraço dos outros funcionários da cafeteria, que sob o olhar da moça do rabo de cavalo, não ousaram fazer perguntas, ficando estabelecido nas entrelinhas que ela havia retornado de uma viagem qualquer. Nada aconteceu, nada a comentar. Cris voltaria a ocupar seu costumeiro lugar atrás do balcão. O posto estrategicamente escolhido pela irmã para evitar contatos maiores com clientes salientes. A moça do rabo de cavalo preferia fazer o trabalho duro a ter que persuadir Cris a não se encantar por algum forasteiro cheio de “boas intenções”. Sim, havia falhado. Um instante de descuido e não pode evitar o pior.
Mas aos poucos, a vida voltaria ao normal. E voltou.


Então, ele entrou. Cabelo batendo no ombro. Jeans desbotado e camisa solta, branca, de algodão. Não quis mesa. Preferiu o balcão. Sentou em frente a Cris que o fitou com olhos arregalados de surpresa. As mãos voltaram a se esconder nas costuras do avental. Isso definitivamente não era bom sinal. A moça do rabo de cavalo distraidamente arrumava as toalhas das mesas ao fundo. Cris sorriu nervosa. O forasteiro, em um golpe preciso, pediu um expresso duplo sem açúcar. Ela corou. As mãos tornaram-se úmidas. Ele insistente, olho no olho, penetrou a lâmina com delicada violência. O coração de Cris voltou a sangrar. Ela era o cordeiro pronto para o sacrifico. Morreria, era sabido, sem fazer ruído.



fim

Desacordo Ortográfico


Eu nunca pensei que iria sentir falta de alguns acentos. De fato, a possibilidade dessa ausencia, assim como de outros itens presentes no novo acordo ortografico, nao tao novo assim, me deixou saudosista. Nao, eu nao sou um homem que vive nas cavernas. Sei da importancia do aprimoramento de antigas posturas e a necessaria inclusao de novos elementos para sobrevivencia nos dias atuais, mas vou ter que ser sincero, nos dias digitais, quase morro para escrever um texto sem que o corretor ortografico tome as redeas daquilo que eu deveria fazer, uma vez que aprendi na escola, espontaneamente.
Basta digitar uma palavra propositalmente errada e antes mesmo de completa la, sua correcao estara concluida alem de vir acompanhada de uma janela que, suposta conselheira, mostrara varias opcoes de correcao... e se diverte por ter nossas vidas em suas maos.
Voce pode estar achando neste momento que estou fazendo tempestade em copo de agua. Essa expressao tambem e antiga, mas a uso por ser extremamente simples a analogia. Existem coisas que nao perdem o valor com o tempo. Prova disso foi o que presenciei dias atras em uma recepcao de um estabelecimento comercial. Havia um pequeno cartaz de aviso fixado na parede, muito claro e bem redigido, mas pecava por um pequenino detalhe no terceiro paragrafo.
Uma jovem advogada, que mais parecia ter saido de algum desenho japones, mantinha se hipnotizada com tamanho pecado. Uma crase ocupava lugar indevido. Um minusculo risco diagonal que sobrevoava um pequeno artigo. Desafiava debochada a ordem estabelecidada. A tal advogada, cercada de todos os argumentos que dispunha, sentiu extremada necessidade de corrigir tao grave erro. Nao sossegou ate ser ouvida e ver um poderoso liquido branco tirar aquele objeto horrendo dessa dimensao.
Como tudo na vida, aparentemente a crase sumiu, mas toda vez que se olhava para o pequeno cartaz, a mancha branca estava ali, indicando a falha. Nao recrimino a jovem advogada. Em dias de correcao automatica, uma falha como essa pode ser catastrofica. Tem se aparelhos que modelam o corpo, cirurgias que esculpem absolutamente tudo, comidas que prometem alimentar e ao mesmo tempo aumentar a queima calorica, carros automatizados, roupas com protecao solar, sapatos que aumentam de tamanho conforme o crescimento dos pes (confesso que vi na TV mas ainda nao consegui vizualizar um sapato crescendo, lembro sim e dos sapatos apertados que usei na infancia) realmente colocar uma crase onde nao se deve e o fim.
Fico pensando no orgulho que eu tinha em ser um bom aluno de portugues, aplicado em empregar corretamente as regras. O mesmo orgulho de um aluno que adora matematica ao concluir com precisao um dificil problema aritmetico, o mesmo sente um jogador de futebol quando consegue executar aquele movimento muito treinado, que resultara em um passe preciso ou em um belo gol.
Sei, precisamos simplificar as coisas. No volei, por exemplo, poucos lembram os movimentos de rotacao. Eu sim. Lembro de todos os esquemas para colocar o levantador no lugar certo e do tempo que levava uma partida. Hoje o jogo e simples, rapido, preciso e de certa forma comum.
Espero sinceramente que nos proximos dias nao estipulem que a rapidez seja mais importante que o aprimoramento. Se continuarmos a simplificar sem distincao acabaremos desfigurados, sem identidade. Talvez em breve, ate o corretor se torne obsoleto. Dificilmente precisaremos dele para corrigir palavras como blz (beleza) vc (voce) asap (as soon as possible – tao logo quanto possivel) etc (eu tenho cerebro).

Observacao: Levei muito tempo lutando contra o corretor ortografico para retirar qualquer acento do texto. Caso tenha encontrado algum, me desculpe, fui corrompido pelo sistema. Prova da fragilidade humana.

Lacuna



Pêndulo estático
Passado
Futuro
Presente Ausente
Dormi de mim com os pés molhados de saudade.
Lençóis amassados
Nervuras internas
Cama
Fuga
De quantos sóis os travesseiros são feitos?
Em sono alto mergulhei
Tentativa frustrada de abafar sons e atingir a margem.



Imagem: Wolney Fernandes (www.instantespossiveis.blogspot.com)

Instabilidade

Um minuto
Nada a dizer
Tempo esgotado
Sentido inverso
Horário
Idade
Percorro conexões rápidas
Por pressa
Por prazos
Céu nublado
Instabilidade no período
Lua minguante
Quarto crescente
E esse tempo...
Que não me dá um tempo?

Ícaro


















De malas prontas
Desci...
Muito além do seguro e permitido.
Na bagagem
Minha alma
Vendida por ingênua vaidade.
Sobrevivo hoje de sentimentos distorcidos
Corações partidos
Lutas internas vencidas
Momentos íntimos roubados
Idéias indefesas
Casos perdidos.
Sofro o repudio de minhas asas.

O Plano

Juca Pixaim era um homem enrolado em si mesmo. Tinha rosto bambo, olhos supracitados e mãos nervosas. Há muito almejava se libertar daquela vida oleosa. Certo seria - pensava entre suspiros - partir sem deixar jazigo.

O plano teria que ter uma logística precisa. Sairia de bigorrilha, cedinho, e desapareceria de nevoeiro na glote do dia. Um detalhe teria que ser estudado à exaustão: Dona Artrite, sogra primorosa que cumpria religiosamente todas as suas obrigações.

Então, certo dia, antes que o galo subisse ao momentâneo para despertar a rajada que dormia, Pixaim dobrou rapidamente algumas iscas, fechou com cuidado a mala, fez o sinal da cruz – vai saber se Dona Artrite não estaria a vigiar escondida no joelho da porta – e sem olhar para trás, sumiu.

É fato que Juca Pixaim jamais foi encontrado. E hoje, dentre todos da rajada, a maior dor é de Dona Artrite que, sentada em sua nova cobaia, lamenta-se inconsolável ter deixado Pixaim fugir por entre os dedos.

Rolamentos



























A Lágrima
desesperada de amor
atirou-se pela janela do olho.
Ferida de morte
deixou seu rastro de dor
enterrando-se viva
nos teus lábios.

Mais tarde,
cansada de sofrer,
se fez
sorriso.



Imagem: Lu Barreto ( lu.menabarreto@gmail.com)

Outono











NUVENS
aéreo Magritte

TROVÕES
eco de tambores africanos

RAIOS
galhos tortos de árvores secas

CHUVA
água que se enterra

Havaianas







As minhas eram viradas
Por vezes remendadas
Para desespero do prego
Tropeções e dedo inchado
Liberdade condicionada
Desassossego
Ao correr levava nas mãos
E no portão
Aos pés retornavam
Estúpidos
Traidores
Denunciavam a façanha
Orgulhosos exibiam
Resíduos de pó e lama
Iam aos pouquinhos
Calcanhar
Miolo
Ponta
E já lá no finalzinho
As tiras não davam conta.

xxxx










Beba Coca-Cola
Não babe a coca
Nem cheire a cola
coca-cola assim não cabe
Se cabe, então babe.
E se sobrar apenas caco
Destino certo
Cloaca

Escuro Acróstico
















Luz furtada
Amor doente
Matou meus versos
Pútridas palavras
Adormece ainda vivo
Devorando-me
Amaldiçoando meus dias

Trincheiras















Quando pequeno eu desejava ser o centro das atenções. Notava-se uma ânsia compulsiva por aprovação e uma busca desesperada por merecimento.

Completado parte do percurso, a bagagem se fez pesada. Percebo que as aprovações que tive mostraram-se irrelevantes. O merecimento, estúpido e egoísta, tornou-se questionável, pois meus objetivos trilharam caminhos diferentes.

Hoje, a quem se atreva me ver de perto - e de perto no sentido mais sensível da palavra - perceberá que no canto esquerdo, interno, quase invisível, reluz com discrição uma lágrima.
Soluço dágua que ficou preso no vazio da aprovação e definitivamente atarraxado no desejo de merecimento.

Muitos me parabenizaram, mas poucos notaram as trincheiras que usei para me proteger. Talvez por falta de um olhar mais criterioso ou simplesmente porque construí algo intransponível ao meu redor.
Crescer não é mais um de meus brinquedos prediletos.