Desafiante da semana: Wolney Fernandes
Tema: "Eu não pinto um retrato para se parecer com a pessoa, mas sim para fazer a pessoa progredir e se parecer com seu retrato."
(Salvador
Dalí)
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De
Wolney Fernandes,
Autoretrato. .....................................................................................................
De Adriano Antunes, O Retrato.
O táxi parou no portão da fazenda. Ricardo preferiu seguir o caminho a pé. Eram menos de quinhentos metros de subida até avistar a casa, mas devido ao tempo que tinha se ausentado, seria como atravessar o oceano atlântico, em uma canoa. Pegou a carteira, deparou-se com um retrato amarelado, 3X4, preso em uma janela de plástico transparente, desviou o olhar, tirou duas notas, enfiou a carteira no bolso da calça, pagou o motorista e desceu.
O terno negro que usava foi comprado, na véspera, em uma requintada loja da capital e agora desfilaria nervoso por uma estradinha de barro e mato. Mirou o portão, olhou para o sapato de pelica que pisava pela primeira vez em terra úmida, respirou fundo e seguiu.
O caminho levava ao passado. Cada detalhe estava impregnado de lembranças. As árvores, as pedras, o banco de tronco. No cume da casa, o galo de metal que mostrava os pontos cardeais. O balanço de pneu no velho carvalho. De tudo, naqueles dias em que brincar era sua única preocupação, o velho carvalho e seu balanço eram os cúmplices preferidos para as mais variadas aventuras.
Ricardo parou em frente ao velho carvalho. Admirou a grande árvore como quem respeitosamente contempla um altar, sagrado. Com os olhos, analisou cada detalhe, das raízes à copa, lentamente, como se lesse nas curvas dessas raízes, nas rugas do tronco e nas formas dos galhos, todos os anos que passou longe e o esforço que havia feito para esquecê-los.
Uma mão delicada pousou em seu ombro e ele, fraco demais para ter qualquer reação, fingiu não perceber. Carina abraçou seu corpo, deu um beijo no seu rosto e apontou a entrada da casa. Ricardo não conseguiu olhar para a irmã. Seguiu calado até a varanda. Os pássaros, fartos naquela região, naquele dia, aguardavam mudos em seus galhos, em seus ninhos, como uma homenagem.
Ricardo travou na porta. Pessoas, em roupas de igual cor, aguardavam ansiosas. Quando, finalmente deu um passo para o interior da sala, sentiu no ar o ruminar baixo de todo tipo de adjetivos que se dá a um filho que abandona a família e vai correr mundo a procura de fama e fortuna e que ao conseguir, apaga as pegadas que deixou para não lembrar o caminho de volta.
Sim, ele era um desses.
Os ruminantes, como se não tivessem falhas e fossem donos de toda a verdade, distribuídos em pequenos grupos ao longo da ampla sala, mascavam seu veneno. Vez por outra, olhavam-se e balançavam a cabeça em sinal de reprovação.
Carina ofereceu uma cadeira ao lado da porta. Ricardo despencou. Os braços desmaiados sobre as coxas e o queixo afundado no peito. Permaneceu assim e ninguém além dela ousou se aproximar.
(...)
Então partiram, todos.
(...)
Já era tarde quando Ricardo e Carina retornaram a casa da fazenda. O chão continuava úmido, das árvores caíam algumas gotas de chuva e as nuvens percorriam rapidamente o céu, empurradas pelo vento.
No caminho, Carina resolveu falar – “Dado, o que está acontecendo contigo meu irmão?”- caminhavam apoiados um no outro – “Soube que tu vais te separar de Sílvia.” – ele parou, olhou para Carina, nos olhos, pela primeira vez – “Faz tanto tempo que não ouço alguém me chamar de Dado. (...) Era assim que ele me chamava.” – voltou a andar, mas Carina não desistiu – “Sílvia me ligou antes de tu chegares. Estava preocupada. Falou da separação.”- aguardou resposta, mas Ricardo desviou – “Vamos parar ali no velho carvalho. Tenho saudades dele.” – ela apertou o braço de Ricardo para chamar atenção – “Tu tens uma família que depende de ti. Que te ama. Pense melhor. Sílvia me disse que a pegaste de surpresa. Que nunca brigaram. Que nunca tiveram motivos para uma separação e que do nada você apareceu com essa.” – Ricardo em silêncio admirava o velho carvalho – “Tu não a amas mais? ”- perguntou taxativa. Ricardo virou-se, continuou a andar em direção a varanda – “Eu não sei. Andei tanto que acabei me perdendo. Acho que me perdi de mim. Não sei quem sou. Não sei do que gosto; não sei o que fazer. Estou tentando protegê-los, só isso.” – Carina sorriu pasma – “Proteger? Proteger do quê? De quem?” – e ele, triste, sentenciou – “De mim. Desse vazio que carrego.”
Ricardo não entrou na casa. Preferiu ficar na cadeira da varanda. Olhando o arrastar das nuvens. Avistou a estradinha que com suas curvas cortava a plantação e sumia no pé da montanha. Ficou assim por longo tempo. Carina, que havia entrado, retornou com uma maleta nas mãos. Uma pequena maleta, de madeira e couro, em perfeito estado de conservação, mas que ao primeiro olhar denunciava a idade que tinha. “Pegue, é pra ti.” – disse entregando o presente –“Ele me fez prometer que iria te achar e te entregar.” - Ricardo pegou constrangido – “Não tenho o direito (...)”- ela interrompeu – “Ele tem.” – virou as costas e entrou.
Ricardo sentiu um aperto no peito. Sentado, com a maleta nas pernas, ficou admirando cada marca, cada mancha no couro escuro. Como se acaricia algo que se ama, passou a mão delicadamente por cima da maleta e pelos lados, até a tranca. Abriu.
Em maços de pouco mais de dois dedos, amarrados com barbante, parte de sua vida estava arquivada na forma de antigos retratos cronologicamente ordenados. Ricardo não conteve as lágrimas. Abriu o primeiro maço. Fotografias da mãe, grávida, nas mais variadas situações. Passou o dedo pela barriga daquela distinta senhora. Tocou a si mesmo. Abriu o segundo maço. Retratos do nascimento até o primeiro ano. Um menino loirinho, com ar sapeca, decidido, soprava com alegria a velinha do bolo. O coração de Ricardo encolheu mais um pouco.
Cada maço representava um período importante, variando entre um ano e no máximo dois. Foi abrindo um a um, na ordem. O menino do bolo agora andava de bicicleta e sorria. Como sorria. Orgulhoso, andava em pernas de pau, atirava de bodoque e soltava pipa. Para a escola, vestia calção marinho, camisa branca e usava chinelos. Corria arrastando a enorme pasta.
No sétimo maço, a ausência da mãe. Ela desapareceu das imagens deixando o grupo com um punhado de tristeza no fundo dos olhos. Um soluço ficou preso na garganta.
As feições de menino, no oitavo maço, deixaram o corpo dando espaço a um rapaz com olhar destemido. Um guerreiro que aspirava grandes conquistas. As imagens de fundo ficavam cada vez mais distantes e não combinavam com os ideais do belo jovem.
Então, no nono maço, um cartão de despedida, um recibo de pagamento, e um retrato. Ricardo fechou os olhos. As imagens voltaram à mente. Tanto tempo. Olhou para o retrato que mostrava o jovem aventureiro, munido de uma mala e muitos sonhos, acenando feliz, sem promessa de retorno. Atrás, o grande carvalho parecia chorar e o balanço estático, congelado no tempo, adormecia vazio.
Depois desse dia, Ricardo retornou apenas duas vezes a fazenda. Nas férias do primeiro ano da faculdade, e a segunda, um ano depois, quando Carina perdeu o bebê e quase morreu. Depois disso, só um amontoado de desculpas.
Já escurecia quando Carina abriu a porta para informar que a comida estava na mesa. Percebeu que a cadeira na varanda estava vazia. Tentou achá-lo por toda a extensão do pátio, mas não o encontrou. No fundo, teve a certeza de que não adiantaria chamar. Ele havia partido, como antes.
(...)
O menino correu até os pés do grande carvalho. O céu pintado de um azul vivo escondeu as nuvens atrás das montanhas. Os pássaros faziam algazarra nos galhos. O menino ainda sem jeito olhava para o pai e para o balanço, temendo o desconhecido. Ricardo incentivava – “Vamos meu filho, ele não vai te morder.” – e após dar um beijo carinhoso em Sílvia, pegou a máquina fotográfica de suas mãos e empolgado continuou – “Vamos Pedro, faça uma pose para o papai.”
Carina observava tudo, da varanda.
Na máquina, um menino, um balanço e um velho carvalho.
No bolso, dentro da carteira, um retrato amarelado, 3X4, que por um instante parecia sorrir.
(.)