domingo, 21 de fevereiro de 2010

ETV 03

Proposta de Adriano Antunes:

"Tudo acabado. Queria não ter escrito. Não conte nada a ninguém. - Helen.
Mas Tia Juley já havia partido - partido definitivamente, e nada no mundo seria capaz de detê-la."

E.M.Forster "Howards End" (1910)
.........................................................................................
De Wolney Fernandes, "AUSÊNCIAS".


..........................................................................................................
De Adriano Antunes, “LIGAÇÕES”.

Mas o que ela não sabia
E por certo não esperava
Que seria alvejada
Pela força da palavra.

Abriu o envelope delicado
De amarelo pardo encerado
Que em folha alva dobrada
Exibia o detalhe que faltava:

“Maria da Luz não é sua verdadeira mãe”... dizia

Com injetados olhos de tristeza
Entre espasmos e histeria
Os dedos trêmulos atestavam
Que sua vida mudaria.

De afeto legítimo, registrado
Se possível fosse, faria
Um NÃO tremido, covarde
Daquela frase excluiria.

Ancorado na pequena palavra
O peso de sua história resistia
De um lado o inesperado aguardava
E do outro a certeza lhe sumia.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Tema 21 - Sentidos Simultâneos


De Adriano Antunes, “Promessas.”

Na colcha de renda
Branca e engomada
Chorava abafado
O anjo parido.

Era menina promessa
Que em Divina ciranda
Entrara na roda da vida
Com olhos fechados de medo.
Fez corpo, pintou o rosto
Virou moça faceira
De peitos fagueiros
A desafiar a blusa de seda.
Entre contrações e gemidos
Expondo seu ventre ao mundo
Deu passagem ao rebento
De destino incerto, duvidoso.
Mas hoje, na cadeira de balanço
Recorda o caminho imposto
Qual diálogo sozinho
Que o tempo imperioso
Impunha aos olhos cansados.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

ETV - 02


Proposta de Wolney Fernandes:

"Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome."
(Clarice Lispector em Perto do Coração Selvagem)
..........................................................................................................
De Wolney Fernandes, "O que não se nomeia."

..........................................................................................................
De Adriano Antunes, “O Retorno”.

Acometido de uma gana instintiva pelo desconhecido, de ultrapassar limites, de estabelecer nova ordem, certa manhã, resolvi fugir.

Desesperava-me viver naquele mundinho restrito, naquele lugarejo ultrapassado, sem provar das maravilhas do mundo. Acreditava-me, que um mundo perfeito deveria existir em algum lugar, e se me desse ao luxo de ali ficar, jamais o encontraria.

Coloquei a velha mochila nas costas. Caprichei na quantidade de coragem e vaidade e fui bem econômico com a humildade, afinal; um guerreiro deve ser altivo, destemido e imbatível.

Percorri os mais variados caminhos. Em alguns lugares fiz amigos, colhi sorrisos e semeei meus sonhos. Noutros, recebi incompreensão, deixei cair lágrimas de desencanto e solidão, mas nunca deixei que percebessem o medo da derrota em meus olhos.

Refugiava-me na desculpa de estar lutando pelo meu sonho, de estar tentando ser feliz. E se alguém se machucasse no caminho: ”paciência” - gritava eu – “culpem o cosmo pelo estrago”.

Mas numa tarde quente de verão, de sensação térmica beirando 45ºC, percebi que o chão se abrira em profundo abismo sob meus pés. Não conseguia acreditar no que via. Em segundos meus planos se desfizeram. Olhei para os lados e percebi que a fenda varava leste a oeste. Contorná-lo fazia-se impossível. Minhas forças não seriam suficientes para mais uma tentativa insana. Restava-me pular ou retornar. Então, embora cansado, optei por viver.

Olhei para trás. Observei meu rastro. Não havia percebido que chegara até ali arrastado. Aos poucos fui tomando conhecimento dos meus passos. Pude ver cada tropeço, cada corrida, cada fuga, momentos de hesitação; outros de excitação e alguns onde caminhava em círculos, perdido.

E foi nessa longa volta ao início, no micro-cosmo da minha insignificante e bela infância; de desajeitada e rebelde adolescência, que encontrei exatamente o que eu não via: a liberdade de estar onde se deve estar.

O que eu quero agora, talvez não tenha nome, mas sei que está aqui, plantado, enraizado no afeto daqueles que incondicionalmente esperaram meu retorno.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Tema 20 - Sentidos Simultâneos


De Adriano Antunes, "Desdobramentos".

Ruga na testa [...] Raiva, dúvida, espanto

Bainha da calça [...] Medida de crescimento, cofre de poeira, alinhavo

Dobradiça de porta [...] Suporte borboleta, poder de soltura, barulho

Prega de saia [...] Camadas de mistério, dança de mostra-esconde, desejo

Aba de envelope [...] Porta para a saudade, enlevo

Joelhos na Missa [...] Ofertas interessadas, desculpas tardias, pecado

Degraus de escada [...] Elevação física, ascensão humana, esforço

Tempo/Espaço [...] Uni-verso sem/com sentimento, dobra-se à próprio gosto

[.]

ENTRETEXTOS VISUAIS - Edição 2010

O projeto "Entretextos Visuais" (ETV) nasceu de um diálogo entre um escritor e um ilustrador que, em maio de 2009, começaram a trocar experiências pelos percursos da escrita e da imagem. A cada semana, um tema gerador impulsiona criações variadas entre as duas linguagens. A cada semana, similaridades ou disparidades criam relações textuais e visuais para além das intenções de cada um.

A edição de 2009 contou com 13 propostas. Agora, a partir do post abaixo, damos início à edição 2010 do projeto.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

ETV - 01


Proposta de Adriano Antunes:

"Senhor... Mire veja: o mais importante e bonito,
do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre
iguais, ainda não foram terminadas - mas
que elas vão sempre mudando."

(Luiz Horácio - Jornal Rascunho Agosto/09)
..........................................................................................................

De Wolney Fernandes, "[In]completudes".
...........................................................................................................

De Adriano Antunes, "Ponto de Partida".

- Eu não lembro bem a data, mas o cheiro de terra úmida do pátio da casa de minha avó, ah senhor, prendeu-se ao meu nariz.

Fez uma pausa, olhou o céu e continuou:

- Toda vez que minha família chegava de cansativa viagem desde Santa Catarina para férias na casa de minha avó Alice, meus olhos pequeninos procuravam identificar as grandes ruas, as árvores floridas e a terra arenosa, úmida, que se estendia do portão por entre as folhagens até a porta da cozinha.
Meu coração batia descompassado.

Sorriu por um instante, inclinou a cabeça para o lado e logo os olhos brilharam:

- Eu corria na frente de todos e afoito empurrava aquele portão de ferro pesado pintado de verde escuro. Contornava a casa em direção a cozinha, passando as mãos em um canteiro de margaridas que indicavam o caminho com uma sequência de dentes branquinhos a sorrir e dar boas vindas.

Levantou-se, foi até a sacada em apenas dois passos. Olhou a cidade.

- Eu adorava o conjunto de xícaras de minha avó Alice. Ela sabia telepaticamente, como toda avó, e me esperava com leite quentinho na xícara que eu mais gostava. Era um conjunto de porcelana muito delicado e pintado a mão, como tudo naquela época, onde gnomos faceiros, multicoloridos, trabalhavam alegremente. Eu os achava tão felizes que me tornava feliz em observá-los.

Parou na entrada, pensou um pouco, depois continuou:

- Havia uma grande taquareira nos fundos da casa. Era o quartel general de meus primos. Ali, escondidos por entre taquaras e folhas secas, bolávamos os mais mirabolantes planos. Inclusive o de fugir de casa quando nossos pais exigiam tema feito e banho tomado.

Olhou desta vez para o pequeno apartamento. Observou a mobília, os quadros, as cores. Desviou o olhar novamente para a sacada.

- Hoje, depois de muito tempo, permiti ao meu corpo de adulto percorrer os arredores de minha infância. Sinto que nesses anos todos impermeabilizei o olhar sobre o meu passado andando por caminhos definidos, paralelos. A casa de minha avó continua lá. Três ruas daqui. Mas eu fui crescendo e limitando minha vida ao meu estacionamento, ao prédio, ao horizonte distante que vejo da minha sacada. Mas hoje, por quase duas horas, percorri meu bairro. Reconheci a Relojoaria Lino, onde minha mãe comprou meu primeiro relógio e me transformou em senhor do tempo; o Mercado Rabaioli, de pães quentinhos pela manhã e corridas urgentes no meio da tarde, quando de súbito faltava manteiga para o lanche da gurizada; a Estofaria Estrela, com seus sofás encalhados, na frente do prédio, expondo suas vísceras de espuma.

Sorriu.

- O bom da vida é isso: as coisas só desaparecem quando morrem dentro da gente.